quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Meu (não)parto



Na semana passada, o documentário “O Renascimento do Parto” estreou e eu não fui vê-lo. Me peguei muitas vezes desejando e planejando assistir e, segundos depois, um medo estranho me acometia. Visitei blogs que costumo seguir e vi uma enxurrada de posts a respeito do filme, mas não li nenhum; assisti várias vezes o início do trailer, mas em nenhuma delas cheguei até o final. E desde o dia do meu aniversário, quando aconteceu a pré-estreia do documentário, um sentimento de perda, que havia meses estava escondido, voltou a visitar minha alma, meu corpo, meu coração. Então percebi que a ferida que eu achei que estivesse curada, a dor do não parto, na verdade, sempre esteve aqui, eu só havia a escondido.

O Ian nasceu de cesárea. Uma cesárea a pré-termo, se é que assim posso chamá-la; uma cesárea às 39 semanas e 2 dias, sem trabalho de parto. O que eu sei - e que até o momento ainda não me sinto preparada a desacreditar -, é que ela foi uma cesárea necessária. Isso eu nunca questionei e é desse questionamento que surge meu medo.

Minha gestação foi tranqüila. No dia em que completei 39 semanas, estávamos bem, o bebê e eu; o tampão mucoso já havia sido parcialmente expelido e eu apresentava um início de dilatação. Dois dias se passaram e, numa quinta-feira, 13/12/2012, eu acordei me sentindo enorme, pesada, com dificuldade para respirar e desconfortável em qualquer posição. Achei todos esses sintomas normais para uma grávida no estágio em que eu me encontrava, a única coisa que me incomodou foi uma sensibilidade enorme na barriga, uma dor estranha na pele, no músculo, nas entranhas; havia partes da minha barriga que doíam com um simples toque. Nesse mesmo dia, estava agendada uma ultrassonografia de rotina. Fomos eu e o meu marido realizar o exame. Durante o procedimento, o simples deslizar do aparelho de UG sobre a minha barriga, mesmo com o gel, trazia-me bastante dor, mas a felicidade em ver o meu bebê todo encolhidinho e aconchegado lá dentro, fez-me esquecer qualquer incômodo. O exame seguiu tranquilo. Os sinais vitais do Ian estavam normais, ele foi “medido” e “pesado” (estimativas de UG), estava em posição cefálica, quase encaixado, a placenta estava madura, mas ainda nutrindo-o. Até ali, tudo perfeito. Contudo, ao final do exame, a médica ficou muda, parou de sorrir, e continuou esfregando o aparelho de UG na minha barriga. Eu gelei. Ela me disse, então, que a quantidade de líquido amniótico havia subido demais e que meu útero estava muito distendido. E, ao saber que eu só veria novamente minha obstetra dali a cinco dias, avisou-me que ligaria para ela para explicar-lhe meu quadro. Assim que eu deixei a clínica de UG, minha obstetra me telefonou, pediu que eu fosse até o seu consultório e lá diagnosticou um quadro de polidrâmnio, excesso de líquido amniótico. Geralmente ele é causado por diabetes gestacional, por má-formação fetal ou por obstrução no esôfago do feto. Os dois primeiros estavam descartados por exames. Restava apenas a obstrução (o que, depois do parto, descartou-se também). Além disso, ela me disse que havia muito resíduo no líquido amniótico, levando-a a suspeitar da existência de mecônio. Ela mediu minha barriga e me pesou: a altura uterina havia aumentado em 6 cm e o peso em 2,5Kg em apenas dois dias. Com os olhos cheios de lágrimas e um nó dolorido na garganta, recebi a recomendação de uma cesárea de emergência, pois, segundo ela me explicou, havia risco de rompimento uterino e de sofrimento fetal; eu poderia perder meu bebê, meu útero e minha própria vida. Fiquei apavorada, desnorteada, e, ainda assim, esperançosa, como se uma boa notícia fosse chegar em seguida, como se a coragem de questionar, procurar outra opinião, ainda me viessem. Lembro de pedir para iniciarmos uma indução naquele mesmo dia; pelo menos tentar, pelo menos entrar em trabalho de parto, mesmo que induzido. Mas logo outros obstetras da mesma clínica foram chamados na sala e todos eles recomendaram unanimemente a cesariana. O olhar do meu marido era de pavor. Insegura, acometida de uma insuportável pressão emocional, cedi e fui encaminhada para maternidade.

Meu (não)parto foi cirúrgico, a pré- termo (sem trabalho de parto), mas consegui humanizá-lo (se é que posso usar essa palavra, já que eu nada protagonizei) da melhor maneira possível para aquela situação. Improvisei um plano de parto (“B”, já que o “A”, que estava lindo e impresso, era para um parto natural) num pedaço de papel a caminho da maternidade e quase todas as minhas exigências foram atendidas. Meu sonho estava desmantelado, então me contentei com o mínimo. As 20:59 horas do dia 13/12/2013, nasceu o meu maior amor, num centro cirúrgico com a trilha sonora preparada pelo papai, com o ar-condicionado e as luzes fortes desligados, o campo abaixado e silêncio absoluto dos profissionais. Eu vi o Ian sair de dentro de um corte de mil camadas na minha barriga, ouvi seu choro forte. O cordão umbilical era pequeno, tinha apenas 26 cm, e foi logo cortado para que o bebê viesse até mim. E, de fato, ele veio e comigo permaneceu durante o restante da cirurgia e da recuperação, pele a pele, olho no olho, todo melecadinho, quentinho, assustado, aconchegado. Nenhum procedimento foi realizado até que ele mamasse. E ele mamou, mamou por quase 30 minutos. Somente depois foi pesado, medido, vestido, tudo comigo e o pai ao lado. Ele dormiu melecadinho, só tomou banho no dia seguinte, no nosso quarto, dado por mim e pelo pai, com ajuda de uma enfermeira querida.

Meu (não) parto foi cirúrgico, convencido-me necessário e assim depois reafirmado em razão do cordão muito curto (segundo minha obstetra, eu jamais conseguiria ter parido o Ian em virtude do tamanho do cordão). Minhas exigências “humanizantes” foram quase todas atendidas. E mesmo assim, os segundos que separaram o Ian de mim, do momento em que ele deixou meu ventre até chegar ao meu peito, pareceram-me uma eternidade, foi como se parte de mim tivesse sido arrancada. Um vazio eternamente marcado na minha alma, no meu corpo, no meu coração.

Chorei meu (não) parto durante semanas. E, então, em busca de forças para enfrentar o puerpério, entregar-me ao Ian e a ele me fusionar, precisei afastar essa ferida, negá-la, escondê-la. Ainda não me sinto pronta para reviver a marca que a cesariana me deixou. Tenho medo de questionar meu (não) parto; do que posso encontrar; de enfrentar esse fantasma. Mas o sistema não me calará para sempre. Admitir meu temor foi o primeiro passo! Logo para o parto renascerei e quem sabe, se a vida decidir dar ao Ian um irmãozinho(a), eu finalmente viverei a experiência de parir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário