Na semana passada, o documentário “O Renascimento do Parto” estreou e eu não
fui vê-lo. Me peguei muitas vezes desejando e planejando assistir e, segundos
depois, um medo estranho me acometia. Visitei blogs que costumo seguir e vi uma
enxurrada de posts a respeito do filme, mas não li nenhum; assisti várias vezes
o início do trailer, mas em nenhuma delas cheguei até o final. E desde o dia do
meu aniversário, quando aconteceu a pré-estreia do documentário, um sentimento
de perda, que havia meses estava escondido, voltou a visitar minha alma, meu
corpo, meu coração. Então percebi que a ferida que eu achei que estivesse
curada, a dor do não parto, na verdade, sempre esteve aqui, eu só havia a
escondido.
O Ian nasceu de cesárea. Uma cesárea a pré-termo, se é que
assim posso chamá-la; uma cesárea às 39 semanas e 2 dias, sem trabalho de
parto. O que eu sei - e que até o momento ainda não me sinto preparada a
desacreditar -, é que ela foi uma cesárea necessária. Isso eu nunca questionei
e é desse questionamento que surge meu medo.
Minha gestação foi tranqüila. No dia em que completei 39
semanas, estávamos bem, o bebê e eu; o tampão mucoso já havia sido parcialmente
expelido e eu apresentava um início de dilatação. Dois dias se passaram e, numa
quinta-feira, 13/12/2012, eu acordei me sentindo enorme, pesada, com
dificuldade para respirar e desconfortável em qualquer posição. Achei todos
esses sintomas normais para uma grávida no estágio em que eu me encontrava, a
única coisa que me incomodou foi uma sensibilidade enorme na barriga, uma dor estranha na pele, no músculo, nas entranhas; havia partes da minha barriga que doíam com um simples toque. Nesse
mesmo dia, estava agendada uma ultrassonografia de rotina. Fomos eu e o meu
marido realizar o exame. Durante o procedimento, o simples deslizar do aparelho
de UG sobre a minha barriga, mesmo com o gel, trazia-me bastante dor, mas a
felicidade em ver o meu bebê todo encolhidinho e aconchegado lá dentro, fez-me
esquecer qualquer incômodo. O exame seguiu tranquilo. Os sinais vitais do Ian
estavam normais, ele foi “medido” e “pesado” (estimativas de UG), estava em
posição cefálica, quase encaixado, a placenta estava madura, mas ainda
nutrindo-o. Até ali, tudo perfeito. Contudo, ao final do exame, a médica ficou muda, parou de
sorrir, e continuou esfregando o aparelho de UG na minha barriga. Eu gelei. Ela me disse, então, que a quantidade de líquido amniótico havia subido demais
e que meu útero estava muito distendido. E, ao saber que eu só veria novamente
minha obstetra dali a cinco dias, avisou-me que ligaria para ela para explicar-lhe
meu quadro. Assim que eu deixei a clínica de UG, minha obstetra me telefonou, pediu que eu fosse até o seu
consultório e lá diagnosticou um quadro de polidrâmnio, excesso de líquido
amniótico. Geralmente ele é causado por diabetes gestacional, por má-formação
fetal ou por obstrução no esôfago do feto. Os dois primeiros estavam
descartados por exames. Restava apenas a obstrução (o que, depois do parto, descartou-se também). Além disso, ela me disse
que havia muito resíduo no líquido amniótico, levando-a a suspeitar da existência de mecônio. Ela
mediu minha barriga e me pesou: a altura uterina havia aumentado em 6 cm e o
peso em 2,5Kg em apenas dois dias. Com os olhos cheios de lágrimas e um nó
dolorido na garganta, recebi a recomendação de uma cesárea de emergência, pois, segundo
ela me explicou, havia risco de rompimento uterino e de sofrimento fetal; eu poderia perder meu bebê, meu útero e minha própria vida. Fiquei apavorada, desnorteada, e, ainda assim, esperançosa, como se uma boa
notícia fosse chegar em seguida, como se a coragem de questionar, procurar
outra opinião, ainda me viessem. Lembro de pedir para iniciarmos uma indução
naquele mesmo dia; pelo menos tentar, pelo menos entrar em trabalho de parto, mesmo que induzido. Mas logo outros obstetras da mesma
clínica foram chamados na sala e todos eles recomendaram unanimemente a cesariana. O olhar do meu marido era de pavor. Insegura, acometida de uma insuportável pressão emocional, cedi e
fui encaminhada para maternidade.
Meu (não)parto foi cirúrgico, a pré- termo (sem trabalho de
parto), mas consegui humanizá-lo (se é que posso usar essa palavra, já que eu
nada protagonizei) da melhor maneira possível para aquela situação. Improvisei
um plano de parto (“B”, já que o “A”, que estava lindo e impresso, era para um
parto natural) num pedaço de papel a caminho da maternidade e quase todas as
minhas exigências foram atendidas. Meu sonho estava desmantelado, então me
contentei com o mínimo. As 20:59 horas do dia 13/12/2013, nasceu o meu maior amor, num centro cirúrgico com a trilha sonora preparada pelo papai,
com o ar-condicionado e as luzes fortes desligados, o campo abaixado e silêncio
absoluto dos profissionais. Eu vi o Ian sair de dentro de um corte de mil
camadas na minha barriga, ouvi seu choro forte. O cordão umbilical era pequeno, tinha apenas 26 cm, e foi logo cortado para que o bebê viesse até mim. E,
de fato, ele veio e comigo permaneceu durante o restante da cirurgia e da recuperação, pele a
pele, olho no olho, todo melecadinho, quentinho, assustado, aconchegado. Nenhum
procedimento foi realizado até que ele mamasse. E ele mamou, mamou por quase 30
minutos. Somente depois foi pesado, medido, vestido, tudo comigo e o pai ao lado. Ele dormiu melecadinho, só tomou banho no
dia seguinte, no nosso quarto, dado por mim e pelo pai, com ajuda de uma
enfermeira querida.
Meu (não) parto foi cirúrgico, convencido-me necessário e assim depois
reafirmado em razão do cordão muito curto (segundo minha obstetra, eu jamais conseguiria ter parido o Ian em virtude do tamanho do cordão). Minhas exigências “humanizantes”
foram quase todas atendidas. E mesmo assim, os segundos que separaram o Ian de
mim, do momento em que ele deixou meu ventre até chegar ao meu peito, pareceram-me
uma eternidade, foi como se parte de mim tivesse sido arrancada. Um vazio
eternamente marcado na minha alma, no meu corpo, no meu coração.
Chorei meu (não) parto durante semanas. E, então, em busca
de forças para enfrentar o puerpério, entregar-me ao Ian e a ele me fusionar,
precisei afastar essa ferida, negá-la, escondê-la. Ainda não me sinto pronta
para reviver a marca que a cesariana me deixou. Tenho medo de questionar meu
(não) parto; do que posso encontrar; de enfrentar esse fantasma. Mas o sistema
não me calará para sempre. Admitir meu temor foi o primeiro passo! Logo para o
parto renascerei e quem sabe, se a vida decidir dar ao Ian um irmãozinho(a), eu finalmente viverei a experiência de parir.
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